quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Coito fiscal interrompido

Coito fiscal interrompido

O sigilo bancário lembra o coito de um jogo da apanhada ou dos polícias e ladrões. O coito, para quem já não se lembra, é aquele local no pátio da escola onde não podemos ser apanhados, onde recuperamos forças e de onde só saímos quando o polícia está distraído ou a tentar apanhar o gordo de óculos das botas ortopédicas. Também os milhões sigilosamente depositados num banco, enquanto aí estão acoitados, é como se não existissem nem tivessem existido, qual soldado da legião estrangeira, impune, sem rasto, nem história, nem passado.Assim que o Governo cessante anunciou que ia terminar com esta pouca-vergonha, a do coito fiscal, saltaram logo os primeiros coelhos, defensores da manutenção do regime antigo. É verdade que a lei já permitia aos inspectores das finanças terem acesso às contas; mas se, no recreio da escola, os polícias tivessem de pedir aos colegas que estão no coito para os prenderem, e estes pudessem recorrer para a professora com efeito suspensivo, entretanto, punham-se todos a andar - até o gordo. Enquanto a autorização ia e vinha, folgavam-se as contas, ou impugnava-se o pedido.É delicada esta matéria; já ouvi uma aluna dizer, em defesa do sigilo, que “um homem tem o direito a comprar um anel para a amante sem ser descoberto”. E não está sozinha ao recorrer ao argumento, demagógico, da defesa da pretensa intimidade dos contribuintes: é seguida por reputados académicos e profissionais do direito, da economia e dos negócios. É, no entanto, sintomático que os arrazoados contra o sigilo bancário recorram, mais ou menos explicitamente, à defesa da intimidade, pressupondo um morganho de pecadilhos que todos cometeríamos numa cumplicidade bafienta...Esquecem que ao mundo dos impostos não interessam as amantes, mas sim os anéis.Quando, por exemplo, o eng.º Monteiro presenteia com uma jóia a menina Linda, sua amante, está apenas a prejudicar as economias da família Monteiro – isto é algo que não me interessa. Mas, se a ourivesaria ou a amante não declararem o que recebem estão a prejudicar-nos a todos e às nossas finanças - aí já me interessa.Descanse-se o eng.º: não parece que interesse ao Estado para onde vai o seu dinheiro, mas apenas de onde ele vem e sobretudo se é ou não declarado. Além disso, a privacidade (conceito juridicamente mais amplo do que o de intimidade) não é um valor absoluto, sofrendo restrições decorrentes do Estado de bem-estar e da igualdade social. Pagar os impostos não chega; é preciso mostrar os recibozinhos do médico e da farmácia para a dedução à colecta, apresentar o atestado da incapacidade para a redução da taxa e, no primeiro mundo, estar preparado para a eventualidade de o Estado vir ver quanto temos nas contas.Passando da argumentação libertina à libertária, há também quem brade que “o fisco não tem o direito de saber quanto é que eu tenho”. Pois não tem o direito, tem o dever. Tributar é isso mesmo, é saber quanto é que cada um tem, para que contribua equitativamente para os encargos do País, redistribuindo-se assim a riqueza. Sempre que o Estado não sabe quanto é que uma qualquer menina Linda tem, o montante do imposto que ela deveria ter pago e não pagou é suportado por todos, ou então é proporcionalmente reduzida a satisfação das necessidades colectivas. Lá paga, outra vez, o justo pelo pecador.Naturalmente que o escrutínio administrativo dos dados decorrentes do acesso às contas de um contribuinte tem de ser enquadrado por directrizes jurídicas de inspecção que assegurem garantias mínimas aos cidadãos, mas não pode deixar de ser um procedimento ao alcance expedito dos inspectores tributários. Como se trata de um processo com custos para o Estado (imagine-se o tempo gasto a analisar os extractos de conta de um ano de um agregado familiar...), deve ser utilizado preferencialmente quando exista uma probabilidade forte de se descobrirem rendimentos não declarados e não nas vulgares inspecções por sorteio. Havendo abusos administrativos, ou voyeurismos, estes devem ser punidos de modo severo, mas o risco de prevaricação não pode pôr em causa a adopção da medida.Um sistema fiscal desenvolvido não pode ter coitos.Portugal é assim. Foi preciso um governo moribundo que, no leito da morte, arrastasse o sigilo consigo. Uma medida que nunca será agradecida por quem a defende, nem perdoada por quem a contesta. Esperemos que o próximo tenha a vontade e a força para não voltar atrás.
Diário Económico, 22/12/2004
João Taborda da Gama é docente universitário de Finanças Públicas e de Direito Fiscal.

1 Comments:

Blogger Sim,sim said...

Apesar de ser um texto escrito em 2004, parece-me ser extremamente actual...Apesar dos escândalos sucessivos que vêm com frequência a lume e que fazem as gordas dos nossos jornais! E, se de facto, o levantamento do sigilo tem como fim levar a cabo vários princípios como os da igualdade, prossecução do interesse público e justa repartição dos encargos a suportar pelo contribuinte...Nada me dará mais gozo senão o de deixar de ser perseguido no recreio pelo puto parvo que pratica "bulling"...É que enquanto classe média, estou farto de:
- ter peso a mais;
- ter botas que não lembram ao diabo, são pretas e parecem autenticos sapatões, tudo para a correcção da minha chata planta do pé;
- e, por fim, estou farto de ser o caixa de óculos perseguido no joguinho da apanhada;

3:26 da tarde  

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