quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Para acabar de vez com a poupança

Para acabar de vez com a poupança

Era assim todos os anos. Lá para meados de Dezembro, o Eng.º Monteiro ia religiosamente ao banco falar com a sua gerente de conta, a menina Irina. Via o dinheiro que tinha amealhado e aplicava tudo o que podia nos produtos de poupança fiscal. Era tiro certo: em impostos poupava quase uns trezentos contos.O Eng.º Monteiro, engenheiro da Câmara vai para mais de vinte anos, é amigo da poupança: primeiro, poupar nos seus impostos, depois ajudar o país, combatendo o endividamento e precavendo a reforma. Aliás, sempre concordou com os argumentos que tem ouvido ao Dr. Bagão Félix nos últimos anos: como as coisas andam, um dia o dinheiro não vai chegar para as reformas de todos e por isso mais vale ir aplicando as economias em alternativas privadas. E, com a poupança-habitação, sempre ajuda a filha, que está quase a casar e a comprar casa.A mulher é que não gosta nada da parcimónia do marido. Quase dois mil contos por ano é muito dinheiro: as contas ficam quase a zero, não se pode substituir a televisão da sala e as férias acabarão, outra vez, por ser remediadas cá dentro, na aldeia da sogra. Assim como assim, que lhe importa que se pague menos ao fim do ano? Os impostos, tinha sido combinado, seria sempre ele a pagar. E a reforma, não acredita que lha tirem, pois desconta todos os meses há quase trinta anos.Mas agora, de um momento para o outro, o Ministro das Finanças quer acabar com todos estes benefícios fiscais.O Eng.º Monteiro ficou confuso e não compreende. Será que diminuiu o endividamento das famílias e as contas da segurança social estão finalmente em ordem, e o benefício fiscal tornou-se obsoleto? Ou então, será que a poupança privada e as nossas reformas deixaram de ser uma prioridade do Governo, e o benefício tornou-se indesejado? Mas o que ele não compreende mesmo é por que razão vai pagar, daqui para o futuro, mais trezentos contos de impostos por ano quando, ainda por cima, o Primeiro-Ministro apareceu na televisão a dizer que o IRS ia baixar.Quem também anda baralhada com isto tudo é a menina Irina: os planos de poupança dão imenso rendimento ao banco, com os encargos de gestão e, como uma vez ouviu dizer numa formação sobre PPR’s, ajudam a limpar os rácios. É por esta razão que todos os anos por esta altura, lá no banco, se gasta um balúrdio em publicidade. Ela pode mesmo jurar que mais de metade dos seus clientes só a procuram no fim do ano e para aplicar o dinheiro nesses produtos. Com dez anos de experiência, também sabe que os clientes não compram os planos pela sua rentabilidade financeira, ainda que superior à média das aplicações, mas apenas pela vantagem fiscal. Acabando o benefício, acaba-se a venda. Pelo menos, virão fins de ano mais tranquilos.O Eng.º Monteiro tem uma suspeita em relação a tudo isto: o que o Governo realmente quer é mais receita e equilibrar as contas públicas sem ter que subir as taxas do IRS. Até está bem visto. Aumentam-se os impostos, baixando os impostos.Assim, o melhor é aproveitar este ano. Alto! Se o Governo quer compor as contas de 2005, se calhar ainda vai é extinguir o benefício relativo aos depósitos feitos em 2004! O Dr. Mateus, jurista lá na Câmara, disse-lhe que não podia ser, que seria retroactivo e inconstitucional aplicar-se a medida já este ano. Mas isso é conversa de advogado... Ainda que seja verdade, o que o Eng.º Monteiro não quer mesmo são arrelias com as Finanças e muito menos gastar o benefício fiscal deste e dos próximos anos num processo nos tribunais cujo desfecho não é certo e, como as coisas andam, já não vai ver. Ia lá alguém preocupar-se com os seus trezentos contos...Este ano, em Dezembro, o Eng.º Monteiro já não vai ao banco falar com a menina Irina. Se calhar terá chegado a altura de pegar nos dois mil contos e comprar aquele ecrã de plasma, ir de férias ao Brasil e, com o que sobrar, pagar o maldito imposto. Ou então, o que vai mesmo fazer é deixar de declarar as rendas que recebe daquele rés-do-chão perto do Campo Grande, arrendado a estudantes universitários da Madeira, que nem sequer pedem recibo. É melhor. Sempre são trezentos contos. Afinal, o IRS é mesmo capaz de baixar.____
Diário Económico, 21-10-2004
João Taborda da Gama é docente universitário de Direito Fiscal.