segunda-feira, março 07, 2005

A tosquia desce ao subsolo

A tosquia desce ao subsolo
João Taborda da Gama

Basílio Telles dizia, em 1899, que a voracidade na tributação aumentava “à medida que a lã se mostrava abundante e se revelava indiferente ou dócil a ovelha a tosquiar”. Parece que os municípios portugueses encontraram o seu tosão de ouro nos cabos, canos, tubos e fios que pululam no subsolo lusitano e levam água, combustíveis e comunicações às populações.
Para as autarquias, o facto de os canos em parte se encontrarem sob vias municipais é suficiente para que se cobre uma “taxa”. O município, dono e senhor do seu território, do alto do Céu às profundezas do inferno, condescendendo na existência de canos, nada mais faz do que colher o doce fruto que lhe pertence pela sua passagem.
Estas portagens subterrâneas esbarram, desde logo, na impossibilidade jurídica de um município estender o seu poder de domínio acima ou abaixo de uma via municipal sem que essa extensão tenha qualquer relação com essa mesma via. Por outro lado, a mera existência dos canos, alguns enterrados há mais de cem anos, nunca seria suficiente para que se cobrasse uma taxa: é sempre preciso que haja alguma actividade por parte do município que comporte custos (por exemplo, o cadastro e a manutenção das canalizações). Por último, ainda alguém há-de provar que as canalizações que estão a ser tributadas não se encontram também no solo de freguesias, do Estado ou mesmo de particulares.
A tributação das canalizações no subsolo é apenas mais uma medida de um plano geral de tosquia, tentado e falhado com a tributação autárquica da publicidade em automóveis e prédios privados. Entretanto, o modus operandi refinou: a edilidade começa por traçar o retrato robot de um sujeito passivo (de preferência abastado e que não vote nas eleições locais) e, encontrado este, assim que lhe topa um qualquer benefício, saca da cartola um imposto a que chama taxa, sem qualquer prestação municipal conexa. Deve ser por isso que hoje qualquer tabela de taxas de uma autarquia é um gigantesco cardápio de inconstitucionalidades.
Mas é inconstitucionalidade que compensa. Desde logo, o pastor é cúmplice na tonsura: às investidas lupinas sobre as suas ovelhas, o governo reage fingindo que não vê, como quem pensa ora aqui está uma bela maneira de dar dinheiro às autarquias sem tocar no défice. Depois, na remota hipótese de uma condenação judicial a restituir as falsas taxas (e se se não limitar os efeitos da sentença apenas para o futuro), ou já se acabou o mandato ou então o Estado há-de entrar com o dinheiro a devolver... E felizmente não há memória de uma condenação em responsabilidade financeira pessoal pela cobrança de receitas em excesso.
A decisão financeira autárquica, no regime jurídico vigente, é irracional, pois assenta numa pretensão de aumento ilimitado das transferências do Orçamento do Estado, não contrabalançadas por um qualquer custo eleitoral local. Aliás, a satisfação dessa voraz pretensão é directamente proporcional aos sucessos eleitorais locais (i. e., quanto mais polidesportivos, rotundas e repuxos, mais votos - sem se exigir directamente um centavo a quem vota).
Esta irracionalidade é agora estendida, contra legem, às taxas: no caso da tributação das canalizações, a economia e a ciência dos impostos mostram que em mercados imperfeitos, até onde não o impeça uma qualquer regulamentação de preços, há uma tendência do mercado para repercutir o imposto no consumidor final, o qual, querendo continuar a tomar banho quente, acabará por pagar a lã tosquiada – sem se aperceber.
Criar impostos disfarçados de taxas é querer continuar a ter sol na eira e chuva no nabal. Mas é sobretudo violar a Constituição, a Lei das Finanças Locais e os direitos das famílias e das empresas. Por isso, é fundamental o papel dos tribunais, e do Tribunal Constitucional em especial, como guardiões do rebanho. Se baixarem a guarda, é caso para dizer: há petróleo no Beato e é da Câmara!

Jornal Expresso, 5/MAR/2005
João Taborda da Gama
(Assistente de Finanças Públicas e de Direito Fiscal na FDL)